quinta-feira, 19 de abril de 2018

AS CONFISSÕES DE UM VIRA-LATA


           Ando pelas ruas desse mundo procurando respostas às minhas indagações. Percebo que os seres ditos humanos são pessoas aflitas, quase sempre impacientes, sem qualquer tipo de sensibilidade, que vivem correndo atrás de seus próprios conflitos, deixando de enxergar a natureza ao derredor.
            Eu, apenas um cachorro, perambulando pela vida, em minha liberdade canina, tentando sobreviver aos devaneios humanos; ora recebendo carinhosos afagos, ora sendo maltratado. Chamam-me de “vira-lata”. Alguns dizem que esse termo é pejorativo, dando-me pouca importância; sou quase insignificante nesse mundo desumano, repleto de desamor. Confesso que há momentos que penso ser invisível, mas tenho que admitir que eu já fui o motivo de muitos sorrisos, de crianças e velhos, no jardim das praças; já matei a solidão de muitos desabrigados, que viviam nas ruas como eu;  já presenciei as suas partidas; muitos deles, abandonados à própria sorte, eternamente esquecidos, morreram sem retornar aos seus lares, o que demonstra que a humanidade merece ser decifrada. Eis a busca das minhas respostas. Porém, por mais que eu tente, na minha vã filosofia de cão sem dono, não consigo compreender a criação humana.  Já ouvi dizer por aí que o homem possui um defeito de fabricação e que por tal razão necessita ser revisto pelo Criador. Não ouso entrar em tais discussões da gênesis humana, porquanto sou apenas uma criatura, entendida como irracional, que veio simplesmente enfeitar o mundo, animando as famílias, alegrando crianças, consolando os velhos e guardando as residências da violência dos próprios homens.
            Vou seguindo, latindo para a vida, farejando a verdade humana.  
            Doze anos já se passaram e, com o corpo já cansado, continuo tentando desvendar os mistérios dos humanos desumanos. São seres que passam a vida inteira sonhando e muitos maquinando maldades. Por falar em sonhos, creio que somente existem para os humanos; cachorros não ousam sonhar, porém confesso que já sonhei um dia e senti inveja de outros animais. No quintal da minha infância, quando ainda tinha dono, olhava para o céu e avistava as gaivotas e urubus voarem diante do azul, em meio às lindas nuvens, que mais se pareciam chumaços de algodão. Muitas das vezes sentia raiva por não ter asas para voar como aqueles pássaros; muitos sabiás e pardais pousavam no telhado e ficavam cantando; jamais se sentiram amedrontados com os meus latidos. Não suportava a alegria daqueles pássaros, que cantavam a liberdade. No início de minha odisseia canina, permaneci frustrado por não ver o mundo do alto, por não ter asas, sentir o vento e sobrevoar a terra. Até que um dia resolvi me desprender daquele quintal, fugindo de casa. Não queria mais ter donos, que muitos cheios de si, não tinham tempo para mim. Não nasci para ficar preso, mas sim para ganhar a liberdade, ainda que terrestre, mas a tristeza insistia incomodar o meu coração. Quem disse que um cãozinho não possui sentimentos? Muitos dizem que temos apenas instinto animal, que apesar de domesticados, somos selvagens e irracionais. Ledo engano dessa gente tão ignorante e insensível! A minha tristeza só passou quando encontrei uma grande amiga em uma dessas minhas andanças pelo mundo. Como era inteligente, sábia, dona de ótimos conselhos e uma excelente psicanalista de animais domésticos. A doutora Filó Maria era uma gatinha de forte personalidade, extremamente sincera, que cuidava dos conflitos interiores de seus amigos e abandonados das ruas.  Talvez você possa estar achando engraçado e se perguntando: um cachorro sendo amigo de uma gatinha? Mas cachorros não gostam de gatos? Mais uma vez percebo a ignorância nos humanos. Infelizmente, a grande maioria não entende os animais; aliás, não entendem nem da própria raça, uma vez que sempre estão buscando algo para preencher o vazio existencial.  E por falar nisso, já dizia o filósofo: “penso, logo existo”. Somos animais e também pensamos sim. Quem disse que não somos seres pensantes? Já dizia a minha querida psicanalista de animais: “se existimos, pensamos e todos nós aqui nesta terra temos um motivo para existir”. Tudo tem um porquê nesta vida tão louca e embaralhada, porém para que o animal viva em harmonia neste planeta, precisaria estar em ótima conexão com o homem. É triste admitir, mas infelizmente temos esse inimigo que está destruindo o nosso habitat com a sua ganância pelo poder e pelo dinheiro. E para onde tudo isso irá nos levar? Seremos definitivamente condenados à destruição, vítimas do próprio homem, que ainda tento desvendá-lo.      
            Confesso, ainda, não ser tarefa fácil desvendar o ser humano, a criatura mais perfeita que Deus fez. Criatura perfeita? Não ouso dizer que o Criador errou na forma, mas alguma coisa saiu errada e, portanto, sem a perfeição almejada. Dizem que a partir do momento em que o homem e a mulher tiveram o livre arbítrio, a liberdade de escolha entre o bem e o mal, tudo se deteriorou nesta terra. As minhas pesquisas revelam que tudo começou com a desobediência do homem ao próprio Deus. Comeram do fruto proibido, da ciência. E, agora, somos os grandes afetados pelo desvirtuamento do caráter da humanidade. Odeio presenciar crianças chorando, mulheres sendo violentadas, guerras e animais sendo mortos pela vaidade do próprio homem.  Mas ainda tenho que continuar a minha labuta diária, sobrevivendo às migalhas e à comida que me é dada nas esquinas da cidade. Há dias em que eu prefiro ficar bem quietinho, no meu canto, debaixo do viaduto, quentinho, e curtir o meu silêncio, apesar do barulho das buzinas e dos motores dos carros.  A natureza que eu estava acostumado a vivenciar converteu-se em asfalto cinzento, em arranha-céus de concreto, mas ainda assim sou feliz com a minha liberdade canina.
            A liberdade não tem preço, mas confesso que num dia desses a minha foi ameaçada pela carrocinha da prefeitura; quiseram me colocar dentro de um compartimento, que mais parecia uma jaula e me levar, sei lá para onde, em um local totalmente fechado, chamado Canil Municipal; talvez ficasse preso por pouco tempo, como em um corredor da morte e depois, talvez, seria acordado em outra dimensão. Seria o meu fim! Prefiro morrer à míngua, com meu corpo cansado pelos anos, do que ser morto pelos funcionários do município, que não sabem o que fazer conosco, cachorros abandonados, que possuem suas dores e sentimentos. Não somos e nunca seremos criminosos, como são aqueles homens, que se deixam envolver pela bandidagem e corrupção. Pelo contrário, nós merecemos a vida e a liberdade até o nosso último suspiro. Não faz parte da natureza da fauna permanecer em cativeiros, como num zoológico. Isso é totalmente desumano.
            Se eu pudesse fazer com que as pessoas me entendessem, diria a elas o tanto que são inexplicáveis. Passam a infância inteira querendo ser grandes, quando atingem a fase adulta, lutam contra o tempo e quando chegam à velhice, acabam entristecidas, adormecidas pelas lembranças de uma juventude fugaz, deprimidas e carentes. Deixam de vivenciar o presente, que é o mais belo da vida. Deveriam aprender conosco, que quase sempre estamos alegres, não importando as circunstâncias e respeitamos todas as fases da vida. E quando somos maltratados pelo homem, ainda assim estamos lá, sem mágoas ou rancores, demonstrando o perdão, o amor e a felicidade, ao abanar as nossas caudas, revelando que a vida de um cão, apesar de tão efêmera, na duração de pouco mais de uma década, vale muito mais a pena. Aliás, em nossa considerável sabedoria, ensinamos a mais linda lição ao homem, o nosso inimigo em potencial – amar sempre, perdoando, não importando a quem. Jamais um ser “humano” presenciará um cãozinho magoado. Sempre que chamados, estaremos dispostos a afagar, farejar e lamber qualquer tipo de tristeza ou sofrimento de nossos donos ou de qualquer outra pessoa que necessite de carinho. Logicamente que, em defesa, mostramos, de vez em quando, as nossas garras bem afiadas e a nossa dentição. É a única maneira que temos de nos defendermos desse mundo cão, revelado pelas práticas mais vis e grosseiras do homem.
            Quando anoitece, costumo ficar a contemplar a negritude do céu, muitas das vezes permeado por estrelas. Penso: ah se os homens tivessem mais olhares para os animais, o mundo se tornaria mais colorido, repleto de amor e de paz.
            As pessoas, ao se tornarem adultas, perdem totalmente a inocência e somente terão a oportunidade de resgatá-la com a presença de um cão, que a ensinará o valor humano da vida.  
            Definitivamente, o homem tem muito que aprender conosco, cães “vira-latas”, mas são incompreensíveis demais para entender. Sendo assim, continuarei latindo para a vida, farejando a verdade humana, até que eu adormeça num canto qualquer e me despeça desse mundo tresloucado.

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