Ando pelas ruas desse mundo procurando respostas às
minhas indagações. Percebo que os seres ditos humanos são pessoas aflitas,
quase sempre impacientes, sem qualquer tipo de sensibilidade, que vivem
correndo atrás de seus próprios conflitos, deixando de enxergar a natureza ao
derredor.
Eu,
apenas um cachorro, perambulando pela vida, em minha liberdade canina, tentando
sobreviver aos devaneios humanos; ora recebendo carinhosos afagos, ora sendo
maltratado. Chamam-me de “vira-lata”. Alguns dizem que esse termo é pejorativo,
dando-me pouca importância; sou quase insignificante nesse mundo desumano, repleto
de desamor. Confesso que há momentos que penso ser invisível, mas tenho que
admitir que eu já fui o motivo de muitos sorrisos, de crianças e velhos, no
jardim das praças; já matei a solidão de muitos desabrigados, que viviam nas
ruas como eu; já presenciei as suas
partidas; muitos deles, abandonados à própria sorte, eternamente esquecidos, morreram
sem retornar aos seus lares, o que demonstra que a humanidade merece ser
decifrada. Eis a busca das minhas respostas. Porém, por mais que eu tente, na
minha vã filosofia de cão sem dono, não consigo compreender a criação
humana. Já ouvi dizer por aí que o homem
possui um defeito de fabricação e que por tal razão necessita ser revisto pelo
Criador. Não ouso entrar em tais discussões da gênesis humana, porquanto sou
apenas uma criatura, entendida como irracional, que veio simplesmente enfeitar
o mundo, animando as famílias, alegrando crianças, consolando os velhos e
guardando as residências da violência dos próprios homens.
Vou
seguindo, latindo para a vida, farejando a verdade humana.
Doze
anos já se passaram e, com o corpo já cansado, continuo tentando desvendar os
mistérios dos humanos desumanos. São seres que passam a vida inteira sonhando e
muitos maquinando maldades. Por falar em sonhos, creio que somente existem para
os humanos; cachorros não ousam sonhar, porém confesso que já sonhei um dia e
senti inveja de outros animais. No quintal da minha infância, quando ainda
tinha dono, olhava para o céu e avistava as gaivotas e urubus voarem diante do
azul, em meio às lindas nuvens, que mais se pareciam chumaços de algodão.
Muitas das vezes sentia raiva por não ter asas para voar como aqueles pássaros;
muitos sabiás e pardais pousavam no telhado e ficavam cantando; jamais se
sentiram amedrontados com os meus latidos. Não suportava a alegria daqueles
pássaros, que cantavam a liberdade. No início de minha odisseia canina,
permaneci frustrado por não ver o mundo do alto, por não ter asas, sentir o
vento e sobrevoar a terra. Até que um dia resolvi me desprender daquele quintal,
fugindo de casa. Não queria mais ter donos, que muitos cheios de si, não tinham
tempo para mim. Não nasci para ficar preso, mas sim para ganhar a liberdade,
ainda que terrestre, mas a tristeza insistia incomodar o meu coração. Quem
disse que um cãozinho não possui sentimentos? Muitos dizem que temos apenas
instinto animal, que apesar de domesticados, somos selvagens e irracionais.
Ledo engano dessa gente tão ignorante e insensível! A minha tristeza só passou
quando encontrei uma grande amiga em uma dessas minhas andanças pelo mundo.
Como era inteligente, sábia, dona de ótimos conselhos e uma excelente
psicanalista de animais domésticos. A doutora Filó Maria era uma gatinha de
forte personalidade, extremamente sincera, que cuidava dos conflitos interiores
de seus amigos e abandonados das ruas. Talvez
você possa estar achando engraçado e se perguntando: um cachorro sendo amigo de
uma gatinha? Mas cachorros não gostam de gatos? Mais uma vez percebo a
ignorância nos humanos. Infelizmente, a grande maioria não entende os animais;
aliás, não entendem nem da própria raça, uma vez que sempre estão buscando algo
para preencher o vazio existencial. E
por falar nisso, já dizia o filósofo: “penso, logo existo”. Somos animais e
também pensamos sim. Quem disse que não somos seres pensantes? Já dizia a minha
querida psicanalista de animais: “se existimos, pensamos e todos nós aqui nesta
terra temos um motivo para existir”. Tudo tem um porquê nesta vida tão louca e
embaralhada, porém para que o animal viva em harmonia neste planeta, precisaria
estar em ótima conexão com o homem. É triste admitir, mas infelizmente temos
esse inimigo que está destruindo o nosso habitat com a sua ganância pelo poder
e pelo dinheiro. E para onde tudo isso irá nos levar? Seremos definitivamente condenados
à destruição, vítimas do próprio homem, que ainda tento desvendá-lo.
Confesso,
ainda, não ser tarefa fácil desvendar o ser humano, a criatura mais perfeita
que Deus fez. Criatura perfeita? Não ouso dizer que o Criador errou na forma,
mas alguma coisa saiu errada e, portanto, sem a perfeição almejada. Dizem que a
partir do momento em que o homem e a mulher tiveram o livre arbítrio, a
liberdade de escolha entre o bem e o mal, tudo se deteriorou nesta terra. As
minhas pesquisas revelam que tudo começou com a desobediência do homem ao
próprio Deus. Comeram do fruto proibido, da ciência. E, agora, somos os grandes
afetados pelo desvirtuamento do caráter da humanidade. Odeio presenciar
crianças chorando, mulheres sendo violentadas, guerras e animais sendo mortos
pela vaidade do próprio homem. Mas ainda
tenho que continuar a minha labuta diária, sobrevivendo às migalhas e à comida
que me é dada nas esquinas da cidade. Há dias em que eu prefiro ficar bem
quietinho, no meu canto, debaixo do viaduto, quentinho, e curtir o meu
silêncio, apesar do barulho das buzinas e dos motores dos carros. A natureza que eu estava acostumado a vivenciar
converteu-se em asfalto cinzento, em arranha-céus de concreto, mas ainda assim
sou feliz com a minha liberdade canina.
A
liberdade não tem preço, mas confesso que num dia desses a minha foi ameaçada pela
carrocinha da prefeitura; quiseram me colocar dentro de um compartimento, que
mais parecia uma jaula e me levar, sei lá para onde, em um local totalmente
fechado, chamado Canil Municipal; talvez ficasse preso por pouco tempo, como em
um corredor da morte e depois, talvez, seria acordado em outra dimensão. Seria
o meu fim! Prefiro morrer à míngua, com meu corpo cansado pelos anos, do que
ser morto pelos funcionários do município, que não sabem o que fazer conosco,
cachorros abandonados, que possuem suas dores e sentimentos. Não somos e nunca
seremos criminosos, como são aqueles homens, que se deixam envolver pela
bandidagem e corrupção. Pelo contrário, nós merecemos a vida e a liberdade até
o nosso último suspiro. Não faz parte da natureza da fauna permanecer em cativeiros,
como num zoológico. Isso é totalmente desumano.
Se eu
pudesse fazer com que as pessoas me entendessem, diria a elas o tanto que são
inexplicáveis. Passam a infância inteira querendo ser grandes, quando atingem a
fase adulta, lutam contra o tempo e quando chegam à velhice, acabam
entristecidas, adormecidas pelas lembranças de uma juventude fugaz, deprimidas
e carentes. Deixam de vivenciar o presente, que é o mais belo da vida. Deveriam
aprender conosco, que quase sempre estamos alegres, não importando as
circunstâncias e respeitamos todas as fases da vida. E quando somos maltratados
pelo homem, ainda assim estamos lá, sem mágoas ou rancores, demonstrando o
perdão, o amor e a felicidade, ao abanar as nossas caudas, revelando que a vida
de um cão, apesar de tão efêmera, na duração de pouco mais de uma década, vale
muito mais a pena. Aliás, em nossa considerável sabedoria, ensinamos a mais
linda lição ao homem, o nosso inimigo em potencial – amar sempre, perdoando,
não importando a quem. Jamais um ser “humano” presenciará um cãozinho magoado.
Sempre que chamados, estaremos dispostos a afagar, farejar e lamber qualquer
tipo de tristeza ou sofrimento de nossos donos ou de qualquer outra pessoa que
necessite de carinho. Logicamente que, em defesa, mostramos, de vez em quando,
as nossas garras bem afiadas e a nossa dentição. É a única maneira que temos de
nos defendermos desse mundo cão, revelado pelas práticas mais vis e grosseiras
do homem.
Quando
anoitece, costumo ficar a contemplar a negritude do céu, muitas das vezes
permeado por estrelas. Penso: ah se os homens tivessem mais olhares para os
animais, o mundo se tornaria mais colorido, repleto de amor e de paz.
As
pessoas, ao se tornarem adultas, perdem totalmente a inocência e somente terão
a oportunidade de resgatá-la com a presença de um cão, que a ensinará o valor
humano da vida.
Definitivamente,
o homem tem muito que aprender conosco, cães “vira-latas”, mas são
incompreensíveis demais para entender. Sendo assim, continuarei latindo para a
vida, farejando a verdade humana, até que eu adormeça num canto qualquer e me
despeça desse mundo tresloucado.
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